quarta-feira, 3 de outubro de 2012

Cúmplices


 Gustavo Godoy

“Pouca coisa é necessária para transformar inteiramente uma vida: 
amor no coração e sorriso nos lábios.”
Martin Luther King

Manhã de domingo, frio quase glacial. Depois de quase três meses, sinto novamente o gostinho de ir para o Hemorio. Conforme o tempo vai passando, os voluntários vão chegando, em sua maioria “marinheiros de primeira viagem”, formados na semana anterior, com aquele misto de medo e ansiedade sobre o que iriam encontrar na chegada ao 9º andar. Logo que entramos na pediatria, a primeira surpresa: a brinquedoteca estava fechada para manutenção e teríamos que realizar a atividade na própria enfermaria. Nada que diminuísse a empolgação em passar mais uma manhã com nossos pequenos amigos.

Mãos lavadas, bolsas devidamente acondicionadas na sala de procedimentos, fomos ao que interessava: passar de leito em leito, arregimentando cúmplices para subverter a ordem daquela enfermaria, tão acostumada com um silêncio quase ensurdecedor. Logo de cara, conseguimos o primeiro: Daniel aguardava ansiosamente a chegada dos tios, enquanto acenava de longe. Mesmo numa cadeira de rodas, foi logo se chegando, como se fosse amigo de longa data.

- Quer pintar, Daniel?

- Quero.

- Quer brincar com massinha, Daniel?

- Quero.

- Quer ouvir uma estória, Daniel.

- Quero.

Se Daniel queria tudo, o mesmo não se pode falar dos outros, inicialmente. Dayane só queria ficar no celular. Depois de um processo árduo de convencimento, topou escutar uma estória. E outra. E outra. E outra. E os livros acabaram. “Não tem problema tia, eu tenho o livro do Chapeuzinho Vermelho”. Tudo bem, Dayane, você que manda, vamos de 'Chapeuzinho Vermelho'. No fim, ainda sobrou tempo de uma partida de 'Cara a Cara', só para variar.

Num outro leito, um corpo completamente coberto, apenas o nariz de fora. “Deve estar dormindo, e com muito frio”, pensamos. “Não, ele está com vergonha de vocês, fingindo que dorme” – entregou a mãe. Dito isso, lá fomos nós quebrar o gelo e acabar com a vergonha, vergonha esta que se foi logo no primeiro contato. Depois de um banho, lá veio Lucas, 12 anos, jogar algumas muitas partidas de Uno, com direito a distribuição de diversos castigos, denominação dada na hora para todas as cartas 'compre 2', 'compre 4', 'pule o próximo', que eram dadas uns aos outros.

Observando tudo de longe, Fabrício, muito pequeno, não queria sair do colo da mãe, nem mesmo para brincar com os tios ou com as outras crianças. Foi, no entanto, personagem do ponto alto daquela manhã: ao vir Daniel, aquele que quer tudo, vestido com uma camisa do Flamengo (ok, ninguém é perfeito), desandou a chorar, com direito a soluços. Tudo porque queria vestir uma camisa igual (e eu pensando que era uma crise de “flamengofobia”). Daniel, do alto da sabedoria dos seus seis anos, pediu licença, foi até o seu leito e logo retornou com a camisa do Flamengo nas mãos, para entregá-la ao Fabrício que, imediatamente, parou de chorar. Pois é, Daniel, quem disse que só os adultos podem ensinar às crianças? No domingo, com aquele pequeno gesto, você deu uma lição para todos nós...

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