Elisa Ramone
Sábado, véspera de dia das mães,
nove e meia da manhã. Voluntários aglomeram-se na sala para repassar a
atividade do dia: escrever cartinhas em formato de coração e decorar pregadores
para dar de presente às mamães. Tudo pronto, que entrem as crianças.
Como
de costume, elas entram aos poucos, ainda meio tímidas, e vão ocupando as
cadeiras, sentando-se às mesas, tomando a sala que logo será – e todas elas em
sua ingenuidade sabem disso – o palco de seu espetáculo, o espaço livre para
sua imaginação. A timidez inicial é, na verdade, a expectativa da libertação
que elas trazem em si, no ineditismo de seus olhares, mas que só compartilham
com quem julgam merecer, com quem aceita também enxergar como elas no mundo
conhecido um mundo novo.
Os
voluntários provavelmente ainda nem sequer notaram o sopro de fantasia que
invadiu a sala no momento em que a porta foi aberta para as crianças. Eles, por
estarem muito preocupados com a execução da atividade, ainda não perceberam essa
loucura sadia que cada uma delas exala no ar, inconsciente e naturalmente, pela
simples atividade biológica de existir. Eles nem mesmo imaginam que estão
prestes a ficar saudavelmente loucos também.
Voluntários
novos rapidamente quebram o gelo, vencem a inibição e começam a construir seus
laços com os pequenos, enquanto os antigos vão refinando as amizades já
conhecidas das outras visitas, matando as saudades das crianças e dessa
experiência transformadora que, mesmo já vivida outras vezes, parece sempre se
renovar de forma diferente. Entre um abraço e outro, entre sorrisos e palavras
trocadas, sem que se perceba, os adultos vão se entregando à alegria e à
imaginação das crianças, vão se tornando também crianças, abrindo seus olhos de
ver, liberando seus ouvidos de escutar e adquirindo uma leveza da qual só se lembravam
como uma recordação distante da infância. O contágio é inevitável. A insensatez
é irresistível. Aquele sopro fantástico, a essa altura, já virou um vento,
invisível e fresco, que percorreu todo o ambiente, despertou a imaginação dos
voluntários, ativou a criatividade das crianças e foi misturando as alegrias de
cada um em uma única e onipresente brisa de contentamento que envolve tudo
naquela sala.
Agora,
ao mesmo tempo que dedinhos cheios de cola transformam uma folha branca com
formato de coração em um rosto e que florezinhas de borracha viram olhos, nariz
e sorriso; outras mãos desenham a caneta os bigodes do gatinho laranja que um
dia fora um pregador. Enquanto isso, um pequeno Power Ranger vermelho circula
por ali, salvando aqueles poucos que ainda não se renderam à fantasia,
trazendo-os para esse universo novo que só as crianças são capazes de
desvendar. Do outro lado da sala, um feiticeiro mascarado lança encantos sobre
todos que cruzam seu caminho, para que ninguém ouse tentar sair desse mundo
mágico.
Daí em diante, tudo é sonho.
Homem-aranha e Power Ranger se unem contra um voluntário-gigante em uma luta
que termina, como não podia deixar de ser, em abraço triplo. Depois, o pequeno
Power Ranger vermelho sobe no voluntário-megazord e sai distribuindo ataques de
beijos, salvando o dia na Casa de Apoio.
Então, o tempo voa na capa dos super-heróis, e a atividade chega ao fim. Voluntários e crianças são agora amigos e cúmplices, porque compartilharam um mundo mágico que ninguém mais conhece e que criaram juntos. As outras pessoas não vão acreditar, vão dizer que isso de magia e mundo encantado não existe, é só brincadeira de criança. Mas é porque elas ainda não sabem que cada um vive no mundo que cria para si e que é só tirar as vendas dos olhos para enxergar que tudo o que existe pode ser transformado pela forma como decidimos interpretar o que nos cerca. Essas crianças nos enfeitiçam com a certeza que elas têm de que basta olhar cada coisa como uma descoberta para que tudo a nossa volta se transforme.
E mais uma vez o dia foi salvo graças às crianças super poderosas =)
ResponderExcluirEu sou suspeita pra falar porque já associo textos da Elisa a coisa boa involuntariamente. Mas já vivi dessa fantasia, tenho muita saudade e sede de criança e esse texto só fez intensificar tudo isso. Arrepiei! Arrasou!
ResponderExcluir