sábado, 19 de maio de 2012

Que gente grande saiba ser criança



Elisa Ramone

Sábado, véspera de dia das mães, nove e meia da manhã. Voluntários aglomeram-se na sala para repassar a atividade do dia: escrever cartinhas em formato de coração e decorar pregadores para dar de presente às mamães. Tudo pronto, que entrem as crianças.

Como de costume, elas entram aos poucos, ainda meio tímidas, e vão ocupando as cadeiras, sentando-se às mesas, tomando a sala que logo será – e todas elas em sua ingenuidade sabem disso – o palco de seu espetáculo, o espaço livre para sua imaginação. A timidez inicial é, na verdade, a expectativa da libertação que elas trazem em si, no ineditismo de seus olhares, mas que só compartilham com quem julgam merecer, com quem aceita também enxergar como elas no mundo conhecido um mundo novo.

Os voluntários provavelmente ainda nem sequer notaram o sopro de fantasia que invadiu a sala no momento em que a porta foi aberta para as crianças. Eles, por estarem muito preocupados com a execução da atividade, ainda não perceberam essa loucura sadia que cada uma delas exala no ar, inconsciente e naturalmente, pela simples atividade biológica de existir. Eles nem mesmo imaginam que estão prestes a ficar saudavelmente loucos também.

Voluntários novos rapidamente quebram o gelo, vencem a inibição e começam a construir seus laços com os pequenos, enquanto os antigos vão refinando as amizades já conhecidas das outras visitas, matando as saudades das crianças e dessa experiência transformadora que, mesmo já vivida outras vezes, parece sempre se renovar de forma diferente. Entre um abraço e outro, entre sorrisos e palavras trocadas, sem que se perceba, os adultos vão se entregando à alegria e à imaginação das crianças, vão se tornando também crianças, abrindo seus olhos de ver, liberando seus ouvidos de escutar e adquirindo uma leveza da qual só se lembravam como uma recordação distante da infância. O contágio é inevitável. A insensatez é irresistível. Aquele sopro fantástico, a essa altura, já virou um vento, invisível e fresco, que percorreu todo o ambiente, despertou a imaginação dos voluntários, ativou a criatividade das crianças e foi misturando as alegrias de cada um em uma única e onipresente brisa de contentamento que envolve tudo naquela sala.

Agora, ao mesmo tempo que dedinhos cheios de cola transformam uma folha branca com formato de coração em um rosto e que florezinhas de borracha viram olhos, nariz e sorriso; outras mãos desenham a caneta os bigodes do gatinho laranja que um dia fora um pregador. Enquanto isso, um pequeno Power Ranger vermelho circula por ali, salvando aqueles poucos que ainda não se renderam à fantasia, trazendo-os para esse universo novo que só as crianças são capazes de desvendar. Do outro lado da sala, um feiticeiro mascarado lança encantos sobre todos que cruzam seu caminho, para que ninguém ouse tentar sair desse mundo mágico.

Daí em diante, tudo é sonho. Homem-aranha e Power Ranger se unem contra um voluntário-gigante em uma luta que termina, como não podia deixar de ser, em abraço triplo. Depois, o pequeno Power Ranger vermelho sobe no voluntário-megazord e sai distribuindo ataques de beijos, salvando o dia na Casa de Apoio. 



Então, o tempo voa na capa dos super-heróis, e a atividade chega ao fim. Voluntários e crianças são agora amigos e cúmplices, porque compartilharam um mundo mágico que ninguém mais conhece e que criaram juntos. As outras pessoas não vão acreditar, vão dizer que isso de magia e mundo encantado não existe, é só brincadeira de criança.  Mas é porque elas ainda não sabem que cada um vive no mundo que cria para si e que é só tirar as vendas dos olhos para enxergar que tudo o que existe pode ser transformado pela forma como decidimos interpretar o que nos cerca.  Essas crianças nos enfeitiçam com a certeza que elas têm de que basta olhar cada coisa como uma descoberta para que tudo a nossa volta se transforme.

2 comentários:

  1. E mais uma vez o dia foi salvo graças às crianças super poderosas =)

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  2. Eu sou suspeita pra falar porque já associo textos da Elisa a coisa boa involuntariamente. Mas já vivi dessa fantasia, tenho muita saudade e sede de criança e esse texto só fez intensificar tudo isso. Arrepiei! Arrasou!

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